
O valor da vida
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Quanto vale uma vida?
Qual o valor da vida? O recente caso do afrodescendente norte americano George Floyd, morto pelo policial caucasiano Derek Chauvin, que gerou série de protestos nos EUA e em algumas outras partes do mundo, pode gerar perguntas como esta. Por que umas vidas aparentam ser mais importantes e geram mais comoção entre as pessoas? O que faz com que grupos se mobilizem para protestar pela morte de um desconhecido?
A vida não tem preço.
Sim, esse é um clichê bastante usado, mas o motivo por trás disso é mais sombrio. Apesar da associação da vida como dádiva divina, bastante infundida na cultura ocidental, a razão é outra: a vida não tem preço porque não pode ser comprada. Não há um lugar que vende vidas e não tem como estoca-las, como nos video-games.

Podem contra argumentar que existe tráfego de escravos e sequestros para extração de órgãos, num mercado assustadoramente lucrativo. No entanto, o que se compra não são vidas e sim seres viventes. Há um diferença abismal entre os conceitos. Se alguém sofre um acidente e morre, não dá para pegar a vida do escravo e coloca-la no cadáver. O valor da vida reside na intangibilidade do acesso.
A ignorância dos antepassados, baseada em um antropocentrismo vaidoso e enviesada por crenças em deuses que controlavam tudo o que não entendiam, ecoa até hoje. Acredita-se que a o valor da vida humana é mais preciosa do que de um animal. Por quê? Por que podemos subjulga-los? Por que eles não têm consciência e nem organizam protestos, nem se agrupam em sociedades para consumir, esgotar e poluir os recursos naturais à disposição?
O fato indiscutível é que, até onde se sabe, vidas não podem ser repostas ou recuperadas. Então, dizer que elas não têm preço pode ser politicamente correto e ético (crença) , mas na prática é só porque não podem ser compradas (fato).
Motivos que levaram a escalada dos protestos no caso George Floyd

Segue alguns dos motivos:
- Gravação e divulgação do assassinato. Pessoas têm fascinação pela morte. Várias se reuniam para assistir execuções de criminosos no passado (forcas, guilhotinas, fogueiras). Talvez haja um certo alivio ao saber que não é com você (SCHADENFREUDE). Redes sociais e a interconectividade fazem informações se difundirem como nunca antes na história. “Oh, uma pessoa morrendo, que chocante. Fulano precisa ver isso. Vou compartilhar”.
- Frequentes casos de abusos de força policial, principalmente contra negros e pobres. Nos EUA, um em cada mil negros são mortos por policiais. Um a cada 40 horas. Muito? Pouco? Estatísticas são traiçoeiras fora de um contexto, mas há um consenso que seja um problema crônico.
- Negros/imigrantes tem menos acesso à geração de riquezas, fazendo com que tenham que procurar alternativas para sobrevivência. Rancor inconsciente das injustiças sociais alimentam desejo de vingança e transgressões ao “sistema”. É um ciclo vicioso ou apenas uma visão parcial do todo? Ao supor que negros/pobres têm mais propensão ao crime, afeta a abordagem do policial, fazendo com que cheguem num estado de alerta, defensivo e agressivo.
- Antigas feridas reabertas na sociedade americana que era legalmente racista há poucas décadas atrás. As chamadas leis estaduais Jim Crow (nome pejorativos dados aos negros) aplicadas na região sul dos EUA, impunham divisões claras para locais onde podiam ficar (como no famoso caso de Rosa Park, que não quis ceder o lugar no ônibus para um branco) e direitos de acesso à instituições públicas e privadas. Isso gera agrupamentos de pares como o mesmo pensamento, ampliando o preconceito e união, de ambas as partes.
- Revolta devido à falta de tratamento e proteção dados aos negros/ pobres/ imigrantes na pandemia do Covid-19. Normalmente, os serviços básicos e pontos finais do comércio são executados por pessoas deste grupo (motoristas, caixas de supermercado. Profissões que exigem baixa capacitação, pagam pouco e requerem interação física). Não querem se expor, mas são obrigados.
- E o prego final: desastrosa declaração do presidente Donald Trump de usar forças armadas para conter as manifestações. Embora o objetivo declarado foi para impedir a propagação do vírus, muitos acharam uma afronta contra a liberdade de expressão. Provavelmente, os dois lados estejam errados. Falta de tato de um lado e super sensibilidade do outro em um momento de crise.

Por que George?
O valor da vida dele era maior do que dos outros tantos mortos, vítimas de crimes parecidos? Não. Obviamente é uma perda irreparável para a família e entes queridos. Mas, se ele tivesse morrido atropelado ou escorregado e batido a cabeça na privada? Quem se importaria além das pessoas próximas? Ninguém. Talvez algum tabloide regional. Ponto. Zero manifestações. Nada de homem branco brasileiro, que nunca pisou nos EUA, escrevendo sobre o assunto (ou sobre ele, especificamente).
Se ele fosse atropelado por algum cantor famoso, talvez fosse citado, embora sem tanta ênfase.
Assim, o valor da vida é bem relativo. Como no filme do Coringa, onde ele critica o excesso de atenção dada aos mortos no metrô, enquanto se fosse ele caído no chão ninguém notaria. Passariam por cima, ignorando-o.
Os culpados? Mídia carniceira que subsiste à base de tragédias, do excepcional, do exótico. Alguma “sub/celebridade” que toma as dores e faz declarações inflamadas de indignação. Pessoas que se interessam por absurdos para preencher o vazio de suas existências banais, sem sequer saberem do que se trata, seguindo seus ídolos.
Exemplo rápido: primeiros mortos pelo COVID-19 foram manchetes nos portais de notícia e televisão. Agora, morrem mil por dia e é nota de rodapé.
O mesmo se aplica aos Amarildos, Marielles, Madeleines da vida. Algumas mortes causam mais repercussão, outras não. Aproximadamente 28 milhões de pessoas morreram este ano até agora. Leu notícias sobre todas? Não, claro que não. Porquê? Por que é banal, é comum, faz parte da vida. O valor da vida está associado à algum contexto ou causa. Totalmente relativo e arbitrário. É uma invenção humana para dar algum sentido e gerar ordem social.
Por que alguns protestos crescem mais do que outros?

Injustiças sociais e mortes por falhas institucionais ocorrem todo tempo. As pessoas se agrupam para reclamar de “balas perdidas”, “gays espancados” e “aumento de impostos”. Alguns ganham grande proporção e aderência; outros não. Por quê?
No livro chamado “O poder do hábito”, do autor Charles Duhigg, tem uma explicação para esses eventos, embora o assunto principal não seja sobre protestos e sim sobre funcionamento do cérebro e cultura corporativa.
Basicamente, o que ele descreve é que manifestações ganham corpo não pelas pessoas diretamente envolvidas com a perda/injustiça, mas sim por membros de grupos/entidades secundários com ligações comuns.
Em outras palavras, segundo o autor, pessoas que fazem parte de congregações, grupos, clubes, afiliações, se sentem constrangidos ao não participar de eventos que integrantes acham relevantes em defender ou apoiar. Um líder importante dentro de um grupo resolve comprar a briga de um conhecido de um outro grupo. Esse líder instigará as pessoas a agir, e os que não o fizerem, ficarão mal vistos. Desta forma, se engajam não pela causa em si, mas para manter o status e benefícios, em níveis de confiança necessários para sua permanência no grupo.
Imaginem: duas torcidas organizadas rivais de um mesmo clube. Um membro da torcida “M” é hostilizado por um dos jogadores perna-de-pau em má fase. O líder da torcida “M” fala com o líder da torcida “P”, explicando o problema. Logo, os rivais se unirão em causa única, uma trégua temporária. Membros da torcida “P”, que não conhecem ninguém da “M”, engrossarão o coro, xingando o jogador na próxima partida. Se eles não seguirem essa recomendação, ficarão marcados por não terem espirito de equipe, que um dos “deles” (coletividade de torcedores) foi insultando por dos “outros” (jogadores/dirigentes/repórteres, etc) e não agiu. Foi algo similar no caso da Rosa Park.
Resumindo:
- O valor da vida não pode ser definido porque não pode ser comprada.
- A super valorização da vida humana em detrimento à outros animais é uma invenção. Não há método que possa mensurar isso objetivamente.
- Pessoas morrem o tempo todo (em média, uma a cada segundo), mas nem todas geram a mesma repercussão ou comoção midiática por serem desinteressantes como produto para atrair anunciantes.
- O tipo da morte de George Floyd (e cor da pele) é que gerou mobilização e não por ser quem ele era.
- Manifestações são engrossadas por grupos secundários e não pelos afetados diretamente na injustiça ou reivindicação.
Caso se interessem:
Concorda? Discorda? Não se importa? O valor da vida pode ser calculado? Comente. Ou não.
Parabéns Hermes, excelente reflexão!
Obrigado Mariana.
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