
Existe uma verdade absoluta?
Este artigo é uma pretensiosa jornada rumo à verdade absoluta. Não qualquer verdade, mas “A” verdade, a última instância, onde ou quando não há mais nada para ser explicado.

Quem pode clamar por tal conhecimento? Como podemos provar que determinada coisa é verdade ou apenas uma invenção? Muito além da realidade objetiva e subjetiva, de fake news, ignorância ou crendices, a pergunta já foi alvo de discussão em vários ramos do saber: filosofia, religião, ciências, ficção científica, entretenimento, etc.
Um filme que ajudou a trazer o assunto para a esfera mais popular foi o Matrix (1999). Viver em uma realidade simulada acreditando que o virtual é real. No entanto, depois de tomar a pílula vermelha, como saber se não está em apenas mais um nível da simulação?
Outro exemplo popular, um pouco mais recente, foi o filme Inception (2010), quando tenta-se iludir uma das vítimas (Sato), induzindo-a à acreditar que acordava de um sonho enquanto ainda estava dormindo. Duas camadas elaboradas de sonho desmascaradas por um tapete de poliéster.
No entanto, o ponto é como saber se estamos na camada final, se é que existe uma. Só nesta camada seria possível contemplar a verdade absoluta. Será mesmo?
Nota: o termo estórias será usado para se referir ao que é inventado e história para apontar para o passado. A palavra estória está em desuso, no entanto será utilizada para enfatizar o que é criação humana.
Contadores de estórias
Deixem-me contar uma história. Há muito tempo atrás, alguns primatas começaram a imaginar coisas que não existiam e atribuir significado para outras: de repente, uma pedra não era só uma pedra, era um amuleto que trazia proteção e sorte ao portador.
Desenhos eram criados para representar ideias concretas ou abstratas. Outros humanos foram seguindo, compartilhando a mesma crença, um acordo comum para facilitar a comunicação, organizar caçadas e se defender de grupos rivais que disputavam os mesmos recursos naturais.
Os primatas com a capacidade imaginativa de criar enredos e estórias tiveram mais sucesso adaptativo que seus outros primos contemporâneos que agiam por puro instinto. A criação de estórias e dar significado para as coisas não foi um invenção humana, resultado de fagulhas criativas primitivas, mas um processo emergente da configuração cerebral do homo sapiens.

Numa seleção natural de estórias, as que traziam mais benefícios para o grupo foram sendo incorporadas nas rotinas e transmitidas para outras gerações, até o ponto de esquecimento de quem foi o autor e qual propósito original. Para complicar, não acreditamos em apenas uma estória, mas várias, se entrelaçando e muitas vezes conflitantes entre si. É uma invenção achar que temos uma narrativa central, um papel para desempenhar. Um Dharma. Somos várias estórias, vários personagens e nenhum deles é o protagonista.
Por exemplo, uma pessoa pode ser pai, filho, marido, amigo, empregado, chefe, subordinado, estudante e professor concomitantemente, trocando as narrativas conforme a ocasião.
Os papéis e seus significados são inventados e arbitrários, sendo polidos no decorrer do tempo. Está é uma estória, uma invenção que existe somente para nós humanos. É uma trama complicada para explicar: a própria explicação sobre o assunto é uma invenção. Seremos capazes um dia de saber qual é a verdade absoluta e objetiva, livre dos vieses mentais e sociais?
Essa estória é o que chamamos de história e cultura humanas. Tudo o que acreditamos são invenções. Tudo.
O começo do problema
Humanos só podem sentir sentimentos humanos e experimentar sensações que o aparato corporal suporta. Estados mentais são tão variados e distintos que permitem muitas combinações, embora não contemple todas as possibilidades. Padrões de pensamento ainda não explorados e as variações que o cérebro ainda pode oferecer e além, muito além disso, há os padrões mentais de outros animais terráqueos que provavelmente não serão compreendidos por completo. Pode acrescentar os extraterrestres se quiser.
Assim sendo, o que chamamos de verdade é apenas a parte que conseguimos lidar com os recursos que temos. Isso por si só já é um grande limitador.
Enxergamos apenas uma pequena faixa do espectro eletromagnético; similarmente, ouvimos, cheiramos e saboreamos uma gama limitada do que ocorre ao redor. Sensações táteis de pressão, frio e calor, idem; sensações emocionais geradas pelos hormônios e outras substâncias que circulam pelo corpo humano, apesar de variadas, têm limites. Quem pode clamar “isso é mesmo verdade”, tendo todas essas restrições? A maioria de nós faz isso. Todo dia. A vida toda.

Absorvendo cultura
Ao nascermos, compulsoriamente somos expostos aos costumes e crenças do círculo social, quando ainda não temos capacidade ou oportunidade de escolha. Esse contato é bom para uma rápida integração com o grupo, mas restringe as possibilidades. Criam-se crenças nucleares em tenra idade que são difíceis de alterar depois.
Aprendemos a controlar o corpo, saber o que dói e o que dá prazer. Repetimos o comportamento de outros, percebendo o que gera recompensa e o que gera punição. Tomamos contato com a linguagem e com os símbolos culturais. O conjunto dessas experiências costumamos chamar de realidade e assumimos como verdade 99,99% do tempo. É a verdade para humanos, mas não a verdade absoluta.
Estórias de outros são recontadas indiscriminadamente, alteradas, ampliadas, distorcidas, sendo absorvidas versões diferentes pela mente de cada pessoa. Cada um entende de uma forma, numa espécie de “telefone sem fio” coletivo, de acordo com os filtros individuais. Estamos imersos num mar caótico de crenças mas, apesar disso, aparentemente funciona.
Ciência e verdade absoluta
1 + 1 = 2, certo? De acordo com estórias criadas, convencionou-se regras que podem ser aplicadas por todas as pessoas, para obtenção de resultados iguais, em qualquer lugar e situação. Esses resultados constantes chamamos de fatos, e explicam a realidade que vivenciamos, mas não significa que sejam “A” verdade absoluta.
Na ciência, na maior parte do tempo, toma-se como verdadeiro a versão mais aceita de determinado campo do conhecimento, chegando ao ponto do esquecimento de que é apenas provisória e aproximada… até que alguém descubra uma forma diferente de explicar determinado evento, dando uma chacoalhada na poeira. Na ciência, as teorias são transientes e carentes de mais e mais explicações. A cada descoberta, surgem mais perguntas.
Equipamentos cada vez mais potentes e precisos são inventados, jogando luz onde havia escuridão, demolindo antigas crenças ou reavivando algumas. Modelos teóricos e simulações criam condições impossíveis ou inviáveis de serem realizadas fisicamente mas, ainda assim, faltam peças no quebra-cabeças. Muitas e muitas vezes cenários são montados e pesquisadores ignoram, desprezam ou deliberadamente isolam outros componentes e fatores que poderiam de alguma forma afetar o resultado desejado. São condições inventadas, artificiais, que refletem parcialmente a realidade, para depois tentar encaixa-las no contexto geral das coisas.
Por exemplo, a teoria da relatividade (macro) não contempla a mecânica quântica (micro) e boa parte das equações da mecânica quântica ignora os efeitos da gravidade por serem ridiculamente pequenos. Assim, mesmo sendo grandes pilares da ciência moderna, ambas são incompletas.
Além disso, há ideias que ainda não foram pensadas e, provavelmente, existem muito mais coisas que nem sabemos que existem para serem sabidas do que as conhecidas.
Deixando (ou tentando) a esfera humana de lado por um momento, poderia se afirmar que existe uma verdade absoluta, regendo tudo o que acontece, do micro ao macro? Leis da física (ou simplesmente leis), quaisquer que sejam, que possam explicar tudo, do princípio ao fim? Ou a ideia de verdade absoluta é apenas mais uma criação humana e que não existe tal coisa? Haveria uma última camada para ser acessada, não tendo nada além dela, nada novo para ser sabido? Parece um cenário aterrador: o Deus dos deuses não tem nada para aprender, mudar ou evoluir.
Eventos passados que não podem mais ser acessados por falta de vestígios ou elos para gerar significado para eles. Quando olha e não enxerga, pois não se sabe o que é para ser visto. Como carimbar algo como verdadeiro se informações cruciais foram perdidas? O que temos são apenas aproximações e talvez seja tudo o podemos esperar. Mas isso é mesmo verdade?
Os homo sapiens, como espécie, têm o aparato necessário para lidar com estes tipos de dilemas? Seria necessário um novo salto evolutivo para quebrar as limitações intelectuais e de processamento de dados para conceber a realidade além dos filtros de carne, células e impulsos bioquímicos?
O próximo da fila
Durantes bilhões de anos, a vida tem evoluído em complexidade na Terra. Uma constante adaptação e refinamento deixando somente os mais aptos prosseguirem. Desda forma, considerando a pífia existência dos homo sapiens na escala temporal, qual seria a próxima espécie que os substituirão? Seríamos o ápice do que o planeta pode produzir? Há alguns caminhos diversos que a humanidade pode enfrentar:
- Com o devido tempo, novas transformações e mutações ocorrerão, mudando o funcionamento do corpo humano, como sempre aconteceu.
- Descobertas científicas no campo da bioengenharia genética criarão uma nova raça de super humanos, uma elite que subjugará o modelo atual, sendo mais fortes, inteligentes, criativos, menos suscetíveis à doenças e com com vida mais longa.
- Inclusão de dispositivos ou próteses que aumentem as capacidades humanas, numa fusão cibernética, dando controle sobre equipamentos e acesso remoto à outras fontes de processamento de informações.
- Redes de inteligência artificial tomarão decisões melhores que humanos, havendo uma mudança de quem detêm o poder no planeta, relegando uma grande massa à insignificância física, intelectual e econômica.

No último caso, redes de inteligência artificial, machine learning e computação quântica estarão em outro patamar de lógica e processamento de dados que humanos não serão capazes de entender e acompanhar. Pode ser que o próximo da fila seja inorgânico e baseado em silício, invés de carbono.
Não tendo as restrições fisiológicas e ambientais, tendo acesso aos mais diversos sensores de captação de estímulos externos e fontes de energia, não seria estranho propor que estruturas assim possam vir a ser os próximos dominantes do planeta. Inteligência não requer consciência.
Dito isso, o leque de possibilidades de exploração da verdade absoluta estaria mais próxima de se concretizar, embora haja o risco de não ter nenhum humano para contempla-la ou que seja capaz de entende-la. Ainda assim, essa civilização tecnológica que propus estaria limitada às leis da física deste universo. Se houver outro, onde elétrons e prótons não formem átomos como conhecemos, o acesso pode ser impossível pelo fato das estruturas dos elementos químicos das coisas não permanecerem coesas.
Será que a verdade absoluta está fora do alcance de qualquer entidade?
Tão perto e tão distante
O condicionamento mental nos faz tender à acreditar que é necessária uma inteligência, indivíduos, máquinas, meios ou qualquer coisa que restrinja ou sirva de depósito e para processamento das informações e de mediação de interações. Causa e efeito através de um período definido de tempo cujos passos dados são gravados na memória universal. Uma maçã que cai de um árvore tem zilhões de informações que poderiam ser extraídas para descrever o evento (desde a criação e jornada de cada um de seus átomos até as reações químicas no enfraquecimento do galho ao ponto da força da gravidade vencer a resistência e atraí-la para baixo).
Esses dados são parte da verdade absoluta. De uma forma ou de outra, o evento aconteceu do jeito que foi. Independentemente das explicações e fórmulas para descrever de maneira inteligível para humanos, houve exatamente um modo como o evento se desenrolou, mesmo que envolva flutuações e incertezas quânticas, que partículas sejam indistinguíveis entre si, mesmo haja outras dimensões espaciais e temporais, realidades paralelas, multiversos ou qualquer outra extravagância natural, existe uma resposta completa. Só não é conhecida ou acessível.

O que acontece não precisa de explicação nem que algo ou alguém lhe dê sentido. Simplesmente foi, é e será. Está acontecendo neste momento, enquanto escrevo e enquanto você lê. Bem na nossa frente. Tão perto e tão distante.
Desta forma, a verdade absoluta não requer que seja compreendida para existir. Arrisco dizer que estaria além da maior divindade que se possa imaginar ou entidade mais poderosa de todas, pois esta também precisaria de uma explicação para sua existência. Cairia em um loop infinito ou atemporal. Mas não tem problema, a verdade absoluta se auto-contempla, mesmo que seja não consciente de si mesma.
Embora escancarada, é inacessível na sua plenitude. O termo “ABSOLUTO”, inventado por primatas, talvez seja o conceito mais incompreensível e cruel de todos.
Isso é verdade?
A resposta é simples e direta: não posso. O máximo é oferecer, dentro de um conjunto restrito de informações e valores, conceitos que não soem absurdos para quem lê. Acreditar na estória é com o leitor.
Além disso, esse pequeno texto não tem a pretensão de revelar o que acontece nos bastidores além da realidade que percebemos e nem o autor é capaz de pensar e se expressar fora dos limites que a experiência humana encerra. Pessoas mais sabias tentaram, como Platão e a parábola das sombras da fogueira na caverna mas, talvez, esteja mesmo além de nossas possibilidades. É apenas uma estória sobre uma estória maior, que pode ser ou não uma verdade absoluta. Pode ser que não tenha uma ou que haja uma superposição de estados em que ambas possibilidades ocorram ao mesmo tempo (ou fora dele).
O fascinante, no entanto, é que, mesmo com as limitações, os humanos são capazes de pensar em coisas que nem sabem, projetar-se para além dos limites e imaginar o inimaginável.
Como consolo, o conhecimento da verdade absoluta não é necessário para viver uma vida. Assim como na ciência, usar aproximações e se contentar com o tangível e a realidade que nos cerca, gerando um sentido próprio para o mundo, pode ser suficiente para a maioria. Para a minoria insatisfeita, resta a incomoda dúvida e a criação incessante de novas estórias.
Qual é a sua verdade? Comente.