
A caçadora de monstros – Parte 1
Uma situação desconfortável
– Ok, aqui vamos nós de novo, ruiva… – falou sozinha, enquanto avaliava o ambiente. Certamente era bem diferente do que gostava, embora a adrenalina fosse bem vinda para variar. – Estou ficando mole – pensou – Maldito seja Abadias e seus vinhos! – Por um instante, sua mente se voltou para sua casa, como costumava chamar, embora fosse uma caverna. Era bastante ampla, parecendo maior por dentro do que por fora. Seu cômodo favorito era o quarto, finamente decorado com quadros, pinturas e tapetes; a cama, grande e confortável, onde amava diversos seres, sempre convidativa para mais uma vez. O que mais gostava, no entanto, eram de suas roupas, adornos, joias, perfumes, cremes, loções e tudo mais para deixa-la atraente. Rachel era bem vaidosa.
Estava cercada por Pilze selvagens de diversos tamanhos e cores. Nem planta nem animal, as criaturas, normalmente pacíficas e estáticas, estavam agitadas, soltando esporos venenosos que criavam uma cortina incomoda e mal cheirosa. Com formato de guarda-chuva, um Pilz era formado por um caule fino com uma penugem que causava severas queimaduras e um platô com manchas que mudavam de lugar, criando um efeito hipnótico e fatal. Não tinham consciência única individual, agindo mais como um coletivo, ligado por suas finas raízes que cobriam o terreno.
O dia estava claro, mas dentro daquela mata, com suas árvores altas e copa densa, parecia noite. A fauna daquele trecho era composta basicamente por insetos que se alimentam da podridão do solo e por roedores carniceiros, genericamente chamados de Maulwürfe, que atacavam furtivamente os pés e as canelas dos incautos, usando garras e dentes afiados. Onde havia Pilze, a vida era escassa.
O devaneio custou caro. WHIPLASH!!!!
– AAAAAIIIIIII!!!!! FILHO DE UMA PUTAAAA!!!! – Berrou, após um longo tentáculo agarrar seu braço esquerdo, rápido como uma chicotada. O tranco firme que se seguiu arrancou o membro do corpo. Novo grito. O uivo de dor foi abafado pelas indiferentes árvores. Filamentos de carne, sangue e energia verde impediam de perde-lo por completo, travando um cabo de guerra com a criatura. Percebeu que suas pernas estavam presas, com os malditos Pilze enrolados até a metade das coxas. O cheiro que exalavam a deixou enjoada e sentiu a terrível queimação dos venenos.
Rachel não estava lá à passeio. O Quiron da vila havia sido bem enfático em sua solicitação e, se ela não trouxesse o que ele pediu, as coisas poderiam ficar bem ruins para a população da vila – Um Knoblauchzehen? Maldito centauro! O que ele pensa que eu sou! – praguejou. No entanto, a caçadora tinha suas próprias motivações, como sempre.
O Heptavarium
Naquele mundo, com tempo e condições ideais, as formas de vida podiam crescer e se desenvolver aparentemente sem limites. As mais simples apenas aumentavam de tamanho; as com um pouco de consciência podiam direcionar a força vital, chamada por uns de Vis Vitalis ou Lebenskraft por outros, e criar soluções para melhor adaptação ao ambiente, como proteção e defesa, ou como ataque. As maneiras eram as mais criativas e inusitadas, embora limitadas e rústicas. Apenas canalizando o skraft não se conseguia nada além do que aumentar um pouco o de tempo de vida.
No meio daquela mata nos arredores da vila, acreditava-se que havia uma criatura com crescimento exagerado e capacidade de controlar os Pilze, criando armadilhas mortais para quem se atrevesse invadir seu território. O problema é que estava se expandindo demais, ameaçando os fazendeiros. Relatos de porcos, ovelhas e bois desaparecidos aumentavam, preocupando o prefeito. Sem um predador natural para manter o equilíbrio, as coisas podiam desandar rapidamente.
Tudo está ligado com o equilíbrio, harmonia e afinação. No Heptavaruim, conjunto de 7 livros apócrifos, tidos como sagrados para uns e crendice para outros, é descrita a maneira como o universo foi criado, através da inspiração divina em forma vibrações energéticas que permeiam todo o espaço. Segundo o Heptavarium, toda a realidade pode ser explicada se reduzida à padrões vibracionais. A música natural contida em todas as coisas. Quando há dissonância, há o desequilíbrio, gerando as mazelas que atormentam todos os seres.
Muitos estudiosos se debruçaram sobre os escritos; uns buscando iluminação, outros o poder. Em certos centros, os livros são proibidos pelas autoridades por causarem “desordem social” e “histéria coletiva”. No entanto, isso não impede que reuniões ocultas aconteçam, juntando um considerável número de adeptos. Dado o conteúdo e aplicações, conseguem grandes riquezas e recursos, sendo seus membros importantes figuras nas comunidades, embora permaneçam incógnitos com seus segredos.
Nos livros, os números primos, aqueles que só podem ser divididos por um e por si mesmos, são parte fundamental para o seu entendimento, embora as interpretações variem e parte permaneça incompreensível, ao que supunham. 1 é O Criador, A Origem; 2 é a dualidade, os opostos complementares; 3 as estruturas básicas das coisas: Espírito, Corpo e Mente; 5 os seres Elementais Primordiais: Fogo, Terra, Água, Metal e Madeira; 7 os livros do Heptavarium; 11 as Dimensões que sustentam a realidade; 13 os Grandes Reinos da Obra Divina.

Muitos conheciam esses termos; alguns, tinham um bom entendimento; outro tanto menor, sabia como pôr em prática os ensinamentos; um grupo restrito tinha fluência; já os mestres eram poucos. Não havia conhecimento de ninguém que pudesse utilizar todo o potencial, sendo essa busca motivo de muitos desastres e mortes. Um rastro de destruição costumava seguir quem se aventurasse no caminho da iluminação total.
Alhos e bugalhos
Knoblauchzehen eram seres intermediários entre animais e plantas, assim como os Pilze, embora tivessem um nível de consciência maior. Normalmente inofensivos e discretos, passam despercebidos por olhos desatentos. No entanto, devido à mutações naturais (ou induzidas), podiam crescer assustadoramente, tornando-se verdeiros monstros. Essas criaturas desequilibradas causavam problemas, sendo necessária a intervenção de um Fluente. Rachel era uma Fluente, embora tenha se desgarrado do grupo original com quem fora treinada.
Assim, conforme o acordo, lá estava ela para pôr fim na criatura e restabelecer o equilíbrio. O problema é que Rachel era, por assim dizer, desequilibrada também, embora tomasse a pecha como ofensa. Suas lutas invariavelmente acabavam em uma grande bagunça. De qualquer forma, o trabalho sujo tinha que ser feito. Sujo porque os fluentes retornavam transformados depois dos combates. A população mais simples achava que traziam azar e que possuíam um cheiro ruim de morte. Uma ofensa mais pesada do que a anterior, na opinião da vaidosa caçadora.
Aquele knoblauchzehen da mata era um dos maiores que ela tinha visto. 10 metros, talvez mais, avaliou. Pelo tamanho, não parecia ser coisa natural ou do acaso. Estava apoiado em um barranco e tinha o formato de uma Lua decrescente, largo nas costas e esquio na frente. No topo do corpo, que não tinha cabeça, uma boca com inúmeros dentes serrilhados, afiados como facas, abria e fechava, soltando um líquido espeço e fedido. Coroando com uma cabeleira, diversos tentáculos balançavam freneticamente emitindo uma fraca luz azulada: era assim que percebiam o ambiente, gerando e recebendo vibrações.
Seu corpo tinha uma pele fina e rosada, tensa como o couro de tambores, porém resistente e propícia para absorver a energia cinética de impactos contundentes. Na parte baixo, rente ao chão, um tubo cheio de nervuras se contorcia expelindo montes de excrescências fermentadas pela digestão. Aquilo não era bom para uma aproximação direta. Força bruta não resolveria. Pior, deixaria-o mais forte. Rachel precisava de um plano, e urgente.
